POR BARBARA RIETHE
Para
atravessar esse caminho é preciso o esforço da imagem em ação. Que começa com
uma dança calma entre ele e ela, dançando suas próprias dúvidas. Começa assim,
com uma música que provoca uma quase histeria. Quase. Eles ainda se contêm,
dentro de si, na contra ação dos músculos e na onda do movimento, se
encontrando, engalfinhando, desencontrando.
Ele começa a correr, com medo, e
enrolar-se inteiro e esconder-se no vazio. Ela se aproxima como chicote. Ele
grita.
-
Você acredita em fantasmas? – diz ela, como corpo fugidio que pergunta para os
músicos e para todos os presentes na sala. Pergunta a todos, absolutamente.
VOCÊ
ACREDITA
EM
FANTASMAS?
Movimento
suspenso no espaço, tempo em pausa.
Ele
responde: EU não. Eu não Eu.... Não. Não, eu, não acredito em fantasmas.
Fantasmas eu não. Acredito em. Fantasmas.
Ela
diz: Pois eu SIM.
Corpo
que dança o horror alegre de sumir dali, corpo que vira fumaça. Risos que
arrepiam a espinha.
E
samba. Tudo vira samba e ela, que dança o horror, dança o amor. E o quanto pode
ter de um em outro? Ele começa a se tornar mais cativo, mais Fourmi, e começam
a enroscar-se um no outro, sendo dois. Os Fourmi que não conseguem sair do
lugar. E ali morrem. Morrem assim mesmo, colados um no outro, dançando um pro
outro a própria alegria e a própria agonia. É fugaz, foi rápido, tanto que
olhos despercebidos não poderiam notar que se tratavam dos Fourmi, aquele
aglomerado de pernas e braços. Mas era.
Era, como disse, até que uma parte
se desgarra e começa a trotar pelo espaço. Uma pessoa-cavalo, era o que se via,
para dizer diretamente o que aconteceu. Um homem-mulher-cavalo que ao encontrar
um velho com um jornal na mão, imediatamente se torna arisco.
-
Knocker! Porque você não pega esse jornal, heim? Aqui está! Não precisa ter
medo de mim, shhh, shhh, shh!!!
E
o cavalo arisco trota agressivamente em círculos, duvidando em aproximar-se ou
não. Mas é um cavalinho curioso, esse!
-
Shh, shh, calma Knocker. Sabe o que tem aqui, meu querido? Os cavalos vencedores
da corrida de amanhã.
Relincho!
-
Eu não quero seu dinheiro! Esse jornal é um presente.
Relincho furioso, arisco.
-
Ah você não me conhece, mas eu te conheço. Não precisa ter medo. Pegue!
Knocker
pega o jornal e arisco começa a cavalgar pelo espaço enquanto o velho, de
longe, narra a partida:
-
O azarão da jogada é o Pontadefaca, mas será possível que ele vai passar o
Silver? Cabeça a cabeça minha gente, uma corrida histórica! É a chance de Tommy
Knocker de ficar milionário se Pontadefaca vencer! E o fim da corrida se
aproxima!! E Pontadefaca é o campeão!
E
Knocker, que é mulher-homem-cavalo começa a correr, e saltar, com um cavalo
feliz, indomável, livre, com o jornal entre os dentes.
Enquanto
ele comemora, ouve-se a voz do velho que diz:
-
E quando ele abre de fato o jornal...
Relincho!
-
E vê que não eram os cavalos, nem a corrida...
Knocker-mulher-cavalo corre
desesperadamente pelo espaço, ficando ofegante.
-
Mas sim a notícia de sua morte no vagão de trem.
O
cavalo relincha, descontroladamente, perdendo o ar, trotando quase sem energia,
corpo disperso fugidio. Ela-Ela grita e cai no chão.
Caiu
do cavalo, de dor. Ficou ali deitada, se entregando no chão. E ele, sentando ao
lado. No espaço via-se um homem e uma mulher. Ela semi-morta e ele congelado,
rígido, com olhos vivos que quase saltam da cara. Ele diz, pela boca dela, o
seu desaparecimento.
-
Olhe pra mim, ali deitada no chão – ele diz – Eu sou bonita não sou? Mas
consumida pela dor. Essa doença que atrofia os músculos me mata. Eu peguei o
meu melhor cavalo esta manhã e saí com ele. Agora estou aqui, no chão, prestes
a virar vegetal. Eu vou virar, sim. Ninguém aparece.
Ela
grita:
-
Socorro! Meu cavalo... onde está meu cavalo?
-
Pois eu sinto que há certo prazer em virar um vegetal. Não é uma perda, não.
Apenas tenho que aprender a viver, sentir, amar como um vegetal. Sinto que não
consigo mover minhas pernas. E logo vocês vão testemunhar minha
transformação...
E
enquanto ele fazia seu discurso, este de se tornar vegetal, ela enrijecia, aos poucos,
seus músculos, respirando de uma certa forma, que dói em quem houve, uma
respiração de agonia, quase sonora, de violino desafinado, com notas cada vez
mais longas. Transforma-se tanto e de tal forma em agonia de morte, que diz:
-
Por favor, senhor, deixe-me morrer. Eu não aguento mais.
Então
o homem levanta-se da cadeira e aproxima-se dele (porque ela virou ele), mede
seu pulso e diz:
-
O senhor autoriza que eu o hipnotize, Valdemar?
-
Sim!! – diz ele, quase morrendo, quase sumindo.
-
Pois então, senhoras e senhores! Quem quiser se aproximar para ver o nosso
moribundo Valdemar minutos antes de sua hipnose, fique à vontade. Vamos deter a
morte aqui, meus senhores. Valdemar, preciso que você siga minha voz, quando eu
contar até 3, você estará em transe hipnótico.
-
Pelo amor de Deus, eu não ague...aguento mais.
-
1.....2.....3.
Valdemar
paralisou-se completamente. Estava lá, homem-pedra, de olhos arregalados. Em
silêncio, aparentemente sem dor, ou agonia. Aparentemente, porque seu olhos...
-
Valdemar, você está me ouvindo?
-
Sim.
-
Você sente dor?
-
Não.
-
Você quer falar alguma coisa?
-
Me deixe morrer, por favor. Por favor, me deixe morrer, eu não aguento mais.
Pausa.
-
Não é possível morrer assim, senhoras e senhores. – diz ele, sem jeito – Vamos, Valdemar,
quando eu contar até 3 você vai abrir os olhos e voltar ao normal, sim?
-
Por favor, acabe logo com isso. Ou me faça viver ou me mate, eu não posso mais!
-
1....2.....3!
O
que se viu não é possível descrever plenamente em palavras. Viu-se um corpo
contorcer-se de tal forma, que jamais poderia ser possível para o corpo humano.
O rosto dele era tão terrível, como se representasse o pior do mundo, toda a
agonia naquela face. E o som que saía da garganta era som de corda torta.
O
médico, assustado, envergonhado de não ter o controle da situação, pergunta:
-
Valdemar, você.... Você está bem?
-
Eu....estou..morto.
E
começa a gritar, de um jeito que te coloca do avesso.
-
Valdemar, quando eu contar até 3 você vai voltar a vida, sim? 1....2....3!
Água
espatifada no chão.
Só
tem ele em cena. Ele que limpa toda a bagunça, e enquanto limpa, ele diz.
-
Eu e Irene somos muito exigentes com limpeza. Temos hora para tudo, até meio
dia já estamos com tudo pronto e eu faço o almoço. Irene adora tricotar. Irene?!
Onde você está? Ela se esconde às vezes, para tricotar, como já falei. Eu fui
casado. Não tem dia que eu não sinta falta da minha Maria Esther. (suspira)
Irene tinha um pretendente, mas nunca se casou... Irene! Onde está você?
Aos pouco vemos Irene em um canto,
sentada em meio a lã, que envolve ela e os móveis. Ela está parada, olhando
para o nada. Olhos de mar.
-
Bem, depois que eu faço o almoço eu saio para o centro, comprar mais lãs para
Irene e conversar com os vizinhos de sempre.
Às vezes temos insônia. Pode-se ouvir de tudo na casa, à noite. Ouvimos
a respiração, a tosse um do outro. Pressentimos a mão que leva ao interruptor
do abajur. Voz de papagaio.
Ele repara que Irene está sentada.
Oh
Irene, você está aí, venha me ajudar, querida. (se aproxima) Irene? (ela não se
move) Ah, sim, precisamos dormir não é? Não fique assim, minha querida irmã,
não fique! Vamos dormir, sim?
Ele
deita-se no colo de Irene, que começa a cantarolar qualquer coisa. Vê-se que
canta Michael Jackson, Queen, depois Billy Holiday , depois David Guetta. Levanta-se
e começa a dançar, ao som de uma música em fuga, que puxa, que bate, que move o
espaço. Música que expulsa. E logo seu irmão vira estátua, e só existe ela, no
meio da sela, presa entre lãs aos móveis.
Ela
dança enroscando-se ainda mais na lã, prendendo os móveis em seu corpo.
Batem
à porta.
Ela
olha. Caminha com dificuldade, com o braço estendido. Caminha e arrasta os
moveis atrás de si. Toca no trinco. Abre a porta.
(Blecaute)