quarta-feira, 29 de outubro de 2014

OS VENCEDORES DE AMANHÃ, de Holloway Horn

Martin “Knocker” Thompson dificilmente seria um cavalheiro. Fora empresário de duvidosas lutas de boxe e de partidas (amistosas) de pôquer, que já não deixavam a menor dúvida. Faltava-lhe imaginação, mas não esperteza e certa habilidade. Seu chapéu de abas curvas, suas polainas e o pregador de gravata de ouro, em forma de ferradura, poderiam ser mais toscos, mas estava tentando despistar.
Nem sempre a sorte ia favorecê-lo, mas o homem se defendia. A explicação não era difícil: “Para cada tonto que morre, nascem mais dez”


- (...)Quer comprar um jornal? Garanto que não é como os outros.
- Não estou entendendo. Como assim, não é como os outros?
- É o Eco de amanhã à noite – disse o velho calmamente.

- (...)Não quer levar este jornal? Não há outro igual no mundo. Nem haverá, por vinte e quatro horas.
- Claro. Se só vai aparecer amanhã – disse Knocker, sarcástico.
- Tem os vencedores de amanhã – disse o outro com simplicidade.
- Está mentindo.
- Veja você mesmo. Aqui estão eles.
Um jornal saiu da escuridão e os dedos de Knocker o aceitaram, quase com medo. Uma gargalhada retumbou no portão, e Knocker ficou sozinho.
“Quinta-feira, 29 de julho de 1926”, leu.
Pensou um pouco. Hoje era quarta-feira, tinha certeza disso. Pegou uma agenda no bolso e consultou-a. Era quarta-feira, 28 de julho, último dia de corridas de cavalos em Kempton. Não restava dúvida.

(trechos de Os Vencedores de Amanhã, ANTOLOGIA DA LITERATURA FANTÁSTICA, p. 202 – 204)
- foto tiradas no ensaio do dia 27/out/2014 durante improviso dos atores

domingo, 26 de outubro de 2014

Trilha da Dúvida #1

Nosso músico e sonoplasta PEDRO FRAGA nos apresenta artistas e músicas que servem de referência e inspiração para a trilha sonora do Projeto Dúvida.

Pra começar, Charles Mingus, compositor e jazzista norte-americano.
O cara é um gênio na improvisação coletiva e esse álbum (The Black Saint and the Sinner Lady) foi descrito como "um dos melhores trabalhos em orquestração feito por um compositor na história do jazz"

Então aperta o play e aproveita o som desse gênio.
E se você curtir (e é bem difícil isso não acontecer) dá pra ouvir o álbum inteiro no youtube.



quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A Partida (três quadros sem notas)

DE PALOMA FRANCA AMORIM

QUADRO I

(Há três malas muito arrumadas em cena e um móvel antigo com gaveta. Ele e ela se olham ternamente. Ela começa a rir desmedidamente enquanto ele dança e balbucia algumas frases de La Vie en Rose. Ela fala algumas palavras em francês provocando-o uma brincadeira linguística/sexual. Começam a rir alto. Comemoram a possibilidade da partida. Ouve-se do apartamento do andar de baixo vassouradas dos vizinhos pedindo silêncio.)


ELA 
(Para o teto, gritando aos vizinhos) Não abriremos mão do francês!! (Continua falando mais alto em francês, Ele começa a cantar La Vie Em Rose com mais ênfase. Os dois dançam, transitam da euforia para o choro durante a dança) Eles nos odeiam.

ELE
(Deixa o abraço e abre um mapa) Aqui! Está vendo? Fica a quatro mil quilômetros, não sentirão nossa falta e nem nós a deles. Está tudo pronto?

ELA
Tudo pronto. E os passaportes? (Procura os passaportes) Onde você guardou os passaportes?! On-de!? Onde você guardou os passaportes?! Onde foi?! (Vai desfazendo a arrumação das malas em fúria). Onde você guardou!?!? Ah, que bom... Estão aqui. Vou guardá-los aqui (com doçura), não os perderemos mais. (Guarda-os no bolso do casaco).

ELE
É melhor que partamos imediatamente para a estação, não quero perder o trem dessa vez.

ELA
Sim! (Apressando-se em rearrumar as malas, mas com cuidado e delicadeza) Sim! Antes, no entanto, eu gostaria de... (Abraça-o) Eu gostaria de me perder durante horas nesse teu abraço, gostaria de gastar aqui séculos nesses poucos minutos que nos restam... Nessa casa... Nesse lugar. Eu duraria muito tempo no tempo em que deslizo sobre os teus braços, assim, molinha molinha... Como água. Eu ficaria a eternidade nesses poucos minutos que nos restam. Nessa casa... Nesse lugar. Eu diria adeus durante horas. Faria a palavra durar o tempo de um dia inteiro, ela caberia em minha boca como se fosse uma grande e interminável massa de ar e eu tivesse que me expandir por inteira para poder enunciá-la. Isso duraria horas. Eu falaria em um alto-falante para que toda essa bosta de cidade pudesse ouvir sem poder se queixar. (Fala como em câmera lenta) A-DE-US. Como é bom. Como é boa essa sensação de fazer tudo caber na boca. (Começa a falar desmedidamente em francês, histericamente, gritando. Mais uma vez o barulho da vassourada)

ELE
Malditos. Vamos logo, se sairmos pelos fundos não precisaremos encontrar a velhota.

ELA
E nem o zelador.

ELE
E talvez possamos desviar do carteiro seguindo pela rua de baixo. 

ELA
Mas e os meninos do futebol?

ELE
Passaremos por eles correndo.

ELA
Com as malas não será possível.

ELE
Será patético. (Ambos riem)

ELA
Vamos. E os passaportes? Onde você os colocou? 

ELE
Foi você a última a tocar neles. 

ELA
Onde estão?! Onde estão!? Os passaportes meu deus!! 

ELE 
(Abre uma das malas, encontra-os) Aqui. Estão aqui.

ELA
Que bom. 

ELE
É melhor eu carregá-los aqui no bolso. 

ELA
Sim. Vamos?

ELE
Vamos!

(Saem. Ela volta.)

ELA
Os passaportes! (Encontra-os na gaveta de um móvel antigo. Sai) 
  
QUADRO II

(Ele e ela estão sentados na plataforma da estação. Começa a chover sobre o banco. Eles precisam ir para um lugar seco em que não há assentos. Ficam de cócoras, ao lado de suas malas, de mãos dadas. Ele tira o chapéu e começa a afrouxar a camisa. Aos poucos os dois vão ficando cansados. O tempo passa. Os dois deitam no chão e dormem.) 

ELA
(Murmurando no meio da soneca) As passagens... Não temos passagens.

(Passa um homem e põe dinheiro no chapéu d’Ele, como que oferecendo uma esmola ao casal que dorme).

QUADRO III

(Passadas algumas horas. O chapéu está cheio de dinheiro. Ele e Ela despertam)

ELE
(Constatando as esmolas) Vamos comprar as passagens e viajaremos de primeira classe! 

(Um senta ao lado do outro, estão no vagão do trem. Tudo é muito bonito e luxuoso)



ELA
E os passaportes?

ELE
Estavam com você.

ELA
Merda! Os passaportes!? (Começa novamente a desarrumar a mala). Onde estão os passaportes?!! (Novamente o ritual histérico de busca. Ele os encontra no chapéu).

ELE 
Aqui, estão aqui.

(Ambos se sentam ansiosos pela partida. No circuito sonoro do trem é anunciado que o veículo está partindo. Ele e Ela percebem que o trem não se move. Percebem os vagões dianteiros indo embora. Eles ficam no trem parado. Transitam da tristeza ao riso. Ele entoa frases de La Vie en Rose)

- exercício dramatúrgico a partir do conto Os Cativos de Longjumeau de León Bloy e de improviso dos atores.
- fotos tiradas no ensaio do dia 20/out/2014 durante improviso dos atores a partir do exercício dramatúrgico.

sábado, 18 de outubro de 2014

OS CATIVOS DE LONGJUMEAU, de León Bloy




Os Fourmi esperam o trem partir
(...) ... Pela décima ou vigésima vez, caro amigo, faltamos com nossa palavra de um modo infame. Por mais paciente que você seja, suponho que já deve estar cansado de nos convidar. A verdade é que dessa última vez, como das anteriores, não temos desculpa, minha mulher e eu. Tínhamos lhe escrito dizendo que contasse conosco e que não tínhamos absolutamente nada para fazer. No entanto, perdemos o trem, como sempre.

Faz quinze anos que perdemos todos os trens e veículos públicos, façamos o que façamos. É horrivelmente estúpido, é de um ridículo atroz, mas começo a acreditar que o mal não tem remédio. Somos vítimas de uma grotesca fatalidade. Não há nada a fazer. Para pegar o trem das oito, por exemplo, planejamentos nos levantar as três da manhã, e até passar a noite em claro. Ora, meu amigo, pois no último momento a lareira se incendiava, no meio do caminho eu torcia o pé, o vestido de Julieta enganchava em algum espinheiro, acabávamos dormindo na sala de espera, sem que nem a chegada do trem nem os gritos do funcionário nos acordassem a tempo, etcétera, etcétera...Da última vez esqueci meu porta-moedas. (...)

(trecho de Os Cativos de Longjumeau, ANTOLOGIA DA LITERATURA FANTÁSTICA, p. 110)

- fotos tiradas no ensaio do dia 15/out/2014 durante improviso dos atores

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A dúvida, por Vilém Flusser


A dúvida é um estado de espírito polivalente. Pode significar o fim de uma fé, ou pode significar o começo de outra. Pode ainda, se levada ao extremo, ser vista como “ceticismo”, isto é, como uma espécie de fé invertida. Em dose moderada estimula o pensamento. Em dose excessiva paralisa toda a atividade mental. A dúvida, como exercício intelectual, proporciona um dos poucos prazeres puros, mas como experiência moral ela é uma tortura. A dúvida, aliada à curiosidade, é o berço da pesquisa, portanto de todo conhecimento sistemático. Em estado destilado, no entanto, mata toda curiosidade e é o fim de todo conhecimento.

VILÉM FLUSSER

terça-feira, 14 de outubro de 2014

UM CRENTE, de George Frost


Ao cair da tarde, dois desconhecidos se encontram nos corredores escuros de uma galeria de quadros. Com um leve calafrio, um deles diz:

-  Este lugar é sinistro. Você acredita em fantasmas
-  Eu, não – respondeu o outro. – E você?
-  Eu, sim – disse o primeiro, e desapareceu.

(ANTOLOGIA DA LITERATURA FANTÁSTICA, p. 185 – 186)



- fotos tiradas no ensaio do dia 13/out/2014 durante improviso dos atores.